Dois antigos mapas recentemente descobertos estão chamando a atenção de pesquisadores por trazerem novas pistas sobre um dos capítulos mais importantes, e muitas vezes pouco explorados, da história do Brasil: a ocupação holandesa no século XVII. Mais do que peças de museu, esses documentos oferecem informações detalhadas sobre os conflitos que moldaram o país no período colonial, com implicações que vão além do campo da história e chegam à forma como o território brasileiro foi organizado e disputado.
Entendendo a descoberta dos mapas e a sua influência na história
As peças foram adquiridas pelo Instituto Flávia Abubakir e passaram por análises detalhadas até que sua origem e relevância fossem confirmadas. O primeiro, datado de 1654, retrata o cerco ao Recife, quando os luso-brasileiros conseguiram expulsar definitivamente os invasores holandeses da cidade. A autoria do mapa foi atribuída a João Teixeira Albernaz, o Segundo, cartógrafo português que pertence a uma das famílias mais importantes da cartografia lusa.
A confirmação foi feita pelos pesquisadores Bruno Ferreira Miranda e Pablo Iglesias Magalhães, que identificaram o traço do autor a partir de elementos recorrentes na caligrafia e no estilo dos mapas da família Albernaz. O documento mostra com grande detalhamento a movimentação da frota luso-brasileira, composta por cerca de 60 embarcações, e a localização de acampamentos e trincheiras, indicando a preparação meticulosa para a retomada de Recife.
O segundo mapa, ainda mais antigo, é de 1624 e mostra a cidade de Salvador durante o momento da invasão holandesa à Bahia. Essa foi a primeira tentativa dos Países Baixos de tomar o controle do Brasil, num contexto em que a disputa entre impérios coloniais se intensificava no Atlântico Sul. A presença flamenga no território brasileiro foi marcada por conflitos intensos e teve impactos diretos sobre a administração, o urbanismo e a vida cotidiana nas regiões ocupadas.
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Por que essa descoberta é tão importante?
A importância desses mapas vai além da representação visual. Eles serviam, na época, como ferramentas de estratégia militar e também como registros de posse territorial. Ou seja, não eram apenas desenhos ilustrativos, mas instrumentos para afirmar domínio político e militar. No caso específico da ocupação holandesa, eles ajudam a compreender como os portugueses estruturaram sua resistência e planejaram a reconquista das áreas ocupadas.
Esses novos achados ajudam a revisar parte da história oficial, que até então era baseada em relatos escritos, muitas vezes com lacunas ou imprecisões. A cartografia histórica, nesse contexto, surge como um complemento valioso para reconstituir acontecimentos e compreender os bastidores da luta por territórios no período colonial. Além disso, os documentos também revelam detalhes sobre a organização urbana dessas cidades no século XVII, antes das reformas mais profundas realizadas posteriormente.
Segundo os pesquisadores, os mapas deixam claro que havia uma preocupação em documentar de forma minuciosa cada etapa das batalhas e da ocupação. Isso sugere que os cartógrafos da época estavam a serviço de um projeto político que ia além do mapeamento: eles também produziam provas visuais que poderiam ser usadas para justificar ações militares, negociações diplomáticas e reivindicações territoriais perante a Coroa portuguesa.
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Como ter acesso a esses dois mapas?
Hoje, os dois mapas podem ser consultados online, no site do Instituto Flávia Abubakir, que pretende ainda lançar uma publicação com estudos detalhados sobre cada uma das peças e seus contextos. O objetivo é tornar essas informações acessíveis tanto para o público acadêmico quanto para a população em geral, ampliando o debate sobre a importância da cartografia na construção da memória histórica.
A redescoberta desses documentos também chama atenção para a necessidade de preservação do patrimônio gráfico e documental do país. Em um cenário em que parte dos acervos históricos corre risco de deterioração ou desaparecimento, iniciativas como essa contribuem para manter viva a história brasileira de maneira concreta, por meio de registros que ajudam a entender como o território foi disputado, defendido e organizado ao longo dos séculos.
No caso do Brasil, onde as disputas por terra e identidade ainda fazem parte do cotidiano, o resgate de documentos como esses reforça a ligação entre passado e presente. Ao revelar novos detalhes sobre a resistência portuguesa e as estratégias dos invasores, os mapas também ajudam a refletir sobre os papéis desempenhados por diferentes povos e culturas na formação do país.
Com esses mapas, o Brasil do século XVII deixa de ser uma abstração para se tornar uma paisagem viva, registrada em detalhes por quem estava no centro dos acontecimentos. Eles enriquecem os acervos históricos e lançam luz sobre uma parte da nossa identidade que muitas vezes passa despercebida nas salas de aula e nos livros didáticos. E, talvez mais importante, mostram que ainda há muito a ser descoberto, e redescoberto, sobre quem fomos, e sobre como o país se transformou no que é hoje.